Imagem: Steve Buissinne por Pixabay

Um comentário rápido sobre censura e liberdade de expressão

Vivemos em uma época na qual os meios de comunicação permitem que a voz de pessoas comuns e pertencentes a grupos excluídos sejam amplificadas. Graças a isso, algumas opiniões sobre a produção criativa alheia que antes ficavam restritas apenas a determinados grupos agora estão amplamente disponíveis para qualquer um ler. Uma das consequências mais perceptíveis desse fenômeno é a facilidade com a qual uma atitude, um comentário, uma construção narrativa ou um detalhe podem gerar uma grande reação. Não é raro, por outro lado, que quem preferia a produção cultural aos modos de antes se incomode e reaja acusando as empresas e artistas de ceder para garantir venda, ou até aqueles que reclamam de intenções censoras. Mas poderia mesmo ser considerado “censura” o que representantes de minorias fazem?

 

O que é censura?

Dentre as definições de “censura” no dicionário Michaelis:

2 Exame de trabalhos artísticos ou de material de caráter informativo, a fim de filtrar e proibir o que é inconveniente, do ponto de vista ideológico ou moral.”

“Proibir” aqui é a palavra chave, já que só pode proibir quem detém poder o suficiente pra isso. Quando um deputado propõe uma lei criminalizando algum um tipo de música, quando um juiz determina por meio de sentença que uma peça de teatro não seja exibidaquando um prefeito determina que histórias em quadrinhos sejam recolhidas, isso é censura. E o é por serem representantes do poder usando a estrutura do Estado pra impedir a exibição de uma obra. Pessoas comuns que reclamam de uma obra e convocam boicote da mesma por qualquer motivo que seja podem até fazer pressão pela censura, mas não podem censurar, já que elas não têm poder de proibir nada.

A censura obviamente bate de frente com a liberdade de expressão, que seria o direito, constitucionalmente protegido no Brasil, do indivíduo pensar o que quiser sobre o que quiser e expressar o que quiser sobre o que quiser. Como todo direito, a liberdade de expressão tem exceções que estão sendo constantemente debatidas. Propaganda nazista, por exemplo, é crime por aqui e a grande maioria dos países considerados desenvolvidos proíbem determinados discursos em alguma medida, geralmente aqueles que descriminam grupos historicamente oprimidos como judeus, mulheres, negros e outras minorias étnicas e LGBTQ+.

 

A questão do “mimimi” de minoria

Essas limitações não ocorrem por medo de “magoar coraçõezinhos frágeis”. Esse tipo de discurso não raro descamba para a violência ou retirada de direito pelo próprio Estado. Por exemplo: O holocausto nazista era totalmente legal de acordo com as leis alemãs da época. Homossexualidade é crime em diversos países do mundo, com pena de morte inclusive, e era crime na Inglaterra até final dos anos 1960. E até a mesma época, casamento entre pessoas de raças diferentes era proibido em alguns estados dos EUA. No Brasil, ainda há pouco havia quem fosse absolvido por matar mulher por ciúmes. Etc, etc, etc. E mesmo que não seja muito claro o quão eficiente a política de proibir discursos é, a população brasileira é bastante resistente quando há proposta de tentativas de soluções não proibicionistas, como incluir diversidade no plano de educação.

A gente até vive em uma sociedade com algum verniz de igualdade, mas há diversos grupos que ainda sofrem violência da população e negligência do Estado aqui mesmo no Brasil, e isso fica fácil de se constatar em um exemplo especialmente cruel: A expectativa de vida do brasileiro médio era de 76 anos em 2018, e a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil era de 35 anos em 2017. Só pra ficar bem claro, temos um grupo de pessoas que morre em média 40 anos antes do que a média da população em geral. E esse maior risco de morrer se dá tanto por violência direta quanto indireta, já que alguém que tem menos chances de concluir os estudos por que sofre discriminação na escola, que tem menos chances de ter um emprego digno ou arrumar um lugar pra morar por preconceito, que muitas vezes recorre a prostituição na rua por ser a única opção que aparece quando a fome aperta, obviamente tem maiores chances de morrer.

 

Porque as minorias não censuram

É possível identificar em alguns momentos que membros de grupos oprimidos façam algumas reclamações fora da realidade. Há um viés censor, por exemplo, em determinar se algo é ou não apropriado antes da obra ser consumida, algo que de fato acontece de tempos em tempos. Também há algumas vezes as reclamações que surgem de leituras rasas, como por exemplo, confundir crítica por meio de ironia com endosso. E também é frequente que aqueles que se opõe às reclamações feitas por alguém da população oprimida tomem um crítico barulhento pelo todo, muitas vezes por má-fé.

Apesar disso, é importante reforçar que feministas, ativistas LGBTQ, movimento negro e outros que representam as minorias políticas não são fortes o suficiente para censurar. Podem reclamar, podem xingar, podem convocar boicote e podem até convencer os produtores culturais da necessidade de que a representação nas obras de ficção sejam mais diversas. Mas a capacidade de influência não vai além disso, o que fica fácil de ver com 5 minutos de pesquisa no Google: não há o suficiente dessas pessoas em posições de poder pra promover o que de fato seria censura. Seja nos três poderes do Estado, seja nas elites dos setores privados.

Quando a maioria do Congresso Nacional for formado por pessoas desses grupos, se isso ocorrer um dia, pode-se pensar nesse risco, mas é fato que a grande maioria do Poder Legislativo é formado por conservadores ou populistas que vão na onda do que vai render mais votos, e quando se trata de questão moral, o que rende voto no Brasil é ser conservador. Por outro lado, obras que representam esses grupos, principalmente os LGBTQ, são censuradas com uma frequência  incompatível com a democracia. Vide a Bienal deste ano.

 

Sobre os guardiões da “liberdade de expressão”

E, por fim, as pessoas que gostam de evocar liberdade de expressão quando criticam os hobbies delas tem uma grande dificuldade de lembrar que reclamar de algo que você achou ruim, ofensivo ou de mal-gosto também é liberdade de expressão. Fica então difícil compreender até que ponto estão preocupados de fato com censura, já que se for o caso, deveriam igualmente horrorizadas quando juiz proíbe peça de teatro, prefeito manda recolher quadrinho ou deputado federal propõe lei criminalizando gênero musical. Porque se não ficam,  cria-se a impressão de que é só um bando de mimado frustrado porque a cultura pop deixou, depois de muita reclamação, de pensar apenas neles como público alvo.

 

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Curtos & Fantásticos: mini-lançamento no Diversão Offline

ATUALIZAÇÃO: Confira também minha entrevista com Rogerio Saladino, parte do Trio Tormenta, no site Movimento RPG.

Fala galera! Aqui é o Vinicius Mendes, host enrolão do Diário de Escrita e um dos organizadores do Curtos & Fantásticos.

No domingo passado aconteceu o Diversão Offline, o maior evento de jogos de tabuleiro da América Latina, e como os públicos de boardgame, RPG e fantasia são muito parecidos, o evento contou também, dentre outras empresas especializadas, com a Jambô Editora, atual lar do universo de Tormenta e também do selo Odisseias, que publicou a versão física do C&F.

Waldir Léo Santos, Álvaro Freitas, João Lucas Gontijo Fraga, Carlos Perini, Vinicius Mendes e Rogerio Saladino no Diversão Offline. Foto: Reprodução/Jambô Editora Instagram Oficial

 

Certo, tudo muito legal, mas o que é o Curtos & Fantásticos?

Curtos & Fantásticos é uma antologia de contos de até 1.000 palavras produzida a partir de um concurso realizado pelo Diário de Escrita, uma live semanal do YouTube onde Karen Soarele, Wesnen Tellurian e eu  compartilhamos nossas metas semanais de escrita e tiramos sarro da cara de quem não as cumpre. Conquistamos um público fiel e fizemos bons amigos com essas lives, pessoas que compartilham suas rotinas, métodos, dificuldades e vitórias na grande aventura que é escrever. Ao mesmo tempo em que boicotamos nossas auto-sabotagens, nos apoiamos e passamos por isso juntos, tornando o processo de escrita menos solitário.

    “— Temos taverneiros para todos os gostos, senhor — disse. — A clientela costuma preferir anões, orcs ou homens rechonchudos para esse trabalho, mas a pergunta realmente importante é se o senhor deseja um taverneiro rude e nojento ou um completamente desinteressante.” (Agência de empregos em tavernas — conto finalista de João Lucas Gontijo Fraga)

 

Com o passar dos episódios, foi crescendo a curiosidade para saber como e o que aquelas pessoas que estavam com a gente ali toda semana escreviam, deixar de nos conhecer apenas como apelidos de Internet em um Vigilantes do Peso literário e nos apresentar como aquilo que realmente somos: escritores, autores e contadores de histórias.

A coisa toda deu um resultado muito mais positivo do que esperávamos: Nossos companheiros escreviam bem e nos fizeram rir, chorar e pensar, uma produção boa demais para ficar restrita a um concurso organizado de forma meio improvisada. A ideia da criação de uma antologia digital para ser distribuída de graça logo recebeu apoio, e não demorou para que o amor de todos os envolvidos pelo projeto, e os contatos de Karen Soarele, rendessem uma edição física pelo novo selo da mítica Jambô Editora.

https://www.instagram.com/p/BwzanBwlnZ6/

E como foi esse lançamento no Diversão Offline?

Seria mais fácil, e igualmente sincero, só dizer que foi incrível. Mas aí eu não estaria cumprindo a meta de escrever um texto sobre o evento, não é?

“Uma forte sensação de culpa e arrependimento tomaram conta de sua mente, culpa por abandonar sua mulher à sorte da pobreza da plebe, da miséria da viuvez e da solidão que a acompanharia pelo resto de sua vida. Culpa por ter condenado seu filho primaveril à orfandade paterna, por tê-lo condenado ao trabalho precoce, transmitindo para ele a sagrada responsabilidade de amparar uma família.” (Réquiem do anônimo — conto de Carlos Perini)

 

Três dos vinte autores conseguiram ir no Diversão Offline em São Paulo além de mim: Carlos Perini,  autor de Réquiem do anônimo, João Lucas Gontijo Fraga, autor de A agência de empregos em tavernas e Waldir Léo Santos, autor de No quarto escuro. Era a primeira vez que os quatro autores participavam de qualquer evento com a missão de divulgar e vender um livro do qual fizeram parte, e a empolgação era palpável, principalmente a de João Lucas cujos olhos brilhavam em um misto de choque e orgulho cada vez que uma cópia era vendida e um autógrafo pedido. Mas Carlos e Waldir não ficaram atrás, o primeiro passando todo o tempo que pode divulgando o lançamento e conversando sobre a antologia, enquanto o segundo levou esposa, bastante orgulhosa, e o filho, certamente a pessoa mais fofa no Centro de Eventos São Luís.

“Vão me chamar de louco por ajudar as pessoas a se livrarem de tudo o que as incomoda. Talvez, de monstro, por realizar o desejo delas… Mas poderia eu não escutar os seus chamados em suas redes sociais, clamando por ajuda?” (No quarto escuro — conto finalista de Waldir Léo Santos)

O grupo de aventureiros inexperientes foi muito bem recebido pela Jambô Editora, incluindo Rogerio Saladino, um dos criadores do cenário de Tormenta, e Álvaro Freitas, um dos atuais autores que produzem para o universo, sendo perdoada até a tentativa de golpe contra a quadrinista Germana Viana, ao tomar o espaço dela na mesa com mais Curtos & Fantásticos quando ela inocentemente saiu para almoçar. Ok, ok, foi só um mal entendido ao rearranjar as obras para tirar algumas fotos, mas essa versão é muito mais legal.

No final das contas, uma grande experiência com os quatro novatos descobrindo um pouco as emoções, o cansaço e as delícias de se estar no lado de lá do balcão. E ao apresentar ao mundo pela primeira vez esse filho com tantos pais e mães diferentes,  algumas lições muitos importantes foram aprendidas: Não tente almoçar rapidinho na Bella Paulista em um domingo a tarde; As pessoas compram sim livros pela capa (beijos de luz Karen Soarele capista talentosa); E com dedicação, amor e esforço, é possível realizar muito, inclusive ter seu primeiro projeto lançado em um evento grande com uma editora respeitada.

Com direito até a ser esnobado por global, mas isso já é história para outro post.

“[…] Toda a riqueza do mundo, todo o acesso aos poderes mágicos que o ritual havia potencializado, aos poderes de magos e bruxos ainda mais poderosos, nada havia conseguido parar a lenta e consistente violência do tempo. Tal qual uma pedra que se desmancha com anos de suaves golpes do mar, ela sentia sua beleza se desmanchando em cada encontro com as horas, minutos, segundos. Cinco anos. Mais cinco anos e a adequação se acabaria. Era a forma como as coisas aconteciam. Século após século, rainha após rainha, esposa após esposa, mulher após mulher.” (Como nascem as bruxas — conto de Vinicius Mendes)
João Lucas, Carlos, Vinicius e Waldir. Foto: Reprodução/Jambô Editora Instagram Oficial

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A Trilogia do Mago Negro II – A Aprendiz (resenha)

Postado originalmente no Cultura Nerd e Geek, em 29/08/2016

No segundo volume da trilogia de Trudi Canavan (a resenha do primeiro pode ser lida aqui), acompanhamos Sonea exatamente havia sido deixada, uma aprendiz recém aceita no Clã dos Magos. Como ficou bem claro no livro anterior, os preconceitos de classe são fortes no país de Kyralia, e a adaptação da primeira aluna favelada a ser aceita como aprendiz no Clã acostumado a receber a elite é o grande foco.

Mas são ache que as dificuldades de Sonea envolvem não saber que talheres usar ou como falar. Seus problemas envolvem a forma como aquela elite com a qual convive agora enxerga os pobres, e ela se vê obrigada a provar seus talentos e suas capacidades repetidamente para colegas e mestres. Para piorar tudo, uma descoberta acidental no livro anterior força que ela guarde um segredo mortal, o que torna sua adaptação ainda mais difícil.

Enquanto isso, Dannyl, o jovem mago que chefiou as buscas por Sonna no livro anterior, parte para terras distantes a serviço do clã. Nesse arco a autora explora de forma mais ampla o universo que criou, mostrando as diversas culturas que o habitam, suas diferenças e similaridades e suas relações com os magos e a magia no geral. Para Dannyl, essa viagem assume de certa forma o mesmo papel que a estrada ganha num road movie, quanto mais ele descobre o mundo, mais aprende sobre si mesmo, para o bem e para o mal.

Diferente dos problemas do volume anterior, aqui a leitura é fluída e envolvente desde o começo. Os personagens se constroem e mostram a que vieram rápido e é fácil se identificar com alguns dos dramas pelos quais eles passam. Canavan ainda se perde em alguns momentos na sua própria escrita, mas dessa vez isso acontece por páginas, não por capítulos.

Também é interessante destacar a inteligência da autora em reservar o primeiro livro para a jornada de Sonea da favela até o Clã e dedicar o segundo livro inteiro à educação dela. Muitas vezes segundos volumes de trilogias passam a sensação de serem apenas uma ligação preguiçosa entre uma apresentação e um final, mas neste caso o segundo livro por si só é uma boa leitura, diria inclusive que trabalha a narrativa muito melhor que o primeiro.

Continua não sendo a melhor obra de fantasia que já li, mas é difícil negar que tenha um valor próprio. Tanto os elementos fantásticos, quanto a critica social de O Mago Negro foram escritos com cuidado e atenção. Uma leitura divertida para fãs do gênero ou de obras  jovens que comentem a sociedade em que vivemos.

 

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Meu Velho Guerrilheiro (Resenha)

Após viver alguns anos fora do Brasil, um autor retorna ao lar para ajudar sua mãe a cuidar do pai, que recentemente passou a se comportar de forma estranha e planeja matar o atual presidente chego ao poder por meio de um golpe de Estado.

Meu Velho Guerrilheiro é o novo romance do pernambucano Álvaro Filho, lançado em 2018 pela editora Jaguatirica. A obra narra a construção das memórias de um filho em relação ao seu pai que, tendo vivido a repressão da Ditadura Militar, torna-se obcecado pela ideia de matar Michel Temer após a queda do governo Dilma em 2016.

 

Um quebra cabeças de estilhaços de memórias

O livro narrado em primeira pessoa conta as impressões do personagem-narrador sobre seu pai, construindo a partir de memórias que viveu e histórias que ouviu uma imagem de quem seria aquele homem. O autor consegue momentos bastante belos a partir dessa proposta, algo potencializado por uma escrita de frases curtas e repetições sonoras, que em muitos pontos flerta com o texto poético, fluxos de pensamento ou até mesmo de delírio.

Enquanto conhecemos melhor o Velho Guerrilheiro do título, também passamos a conhecer melhor o narrador, herdeiro da cultura familiar de seus pais e avôs, e consequentemente fruto desses elementos. Pouco a pouco ele vai entendendo o peso do passado na construção de  alguém como indivíduo e o quanto a hereditariedade pode muitas vezes fazer as vezes de destino inescapável.

 

Quando a repetição se torna repetitiva

Confesso que não estou familiarizado com a obra de Álvaro Filho, por isso fico sem saber se algumas escolhas partiram do que se entendeu adequado para este romance, ou se partiram do estilo pessoal do autor.

O uso de repetições estratégicas de palavras é utilizado frequentemente para dar sonoridade e ritmo à narrativa, ao mesmo tempo em que o recurso enfatiza alguns temas centrais de cada cena, reforçando os vínculos entre as ideias que formatam a visão do mundo do protagonista. O bom uso desse recurso foi um dos responsáveis por alguns dos momentos mais belos do texto, mas o uso excessivo torna vários trechos cansativos e tira um pouco do impacto das partes em que funciona.

O problema é acentuado cada vez que isto também gera a sensação de estar relendo algo que já fora recentemente lido, com parágrafos reproduzidos com apenas algumas poucas trocas de palavras. Se por um lado pode-se argumentar que a temática da importância da memória se reforça com esse recurso, raramente acrescenta algo ao que está sendo narrado.

 

O inevitável comentário político

A obra tem um claro viés político, e se o texto de Meu Velho Guerrilheiro não dá nome aos bois, qualquer entrevista com Álvaro Filho deixa claro que a narrativa entende o governo Temer pós-Impeachment, entre 2015 e 2018, como fruto de Golpe. Obviamente, o grau de concordância do leitor com a visão de mundo do autor influenciará nas impressões finais do livro.

Apesar disso, a construção da imagem do pai do narrador a partir de relatos e impressões do filho, frente ao medo de ver esse mesmo pai ser perdido pelo fantasma da doença mental, cria uma obra com alguns trechos inspirados e uma carga emocional que frequentemente se mostra sincera.

Curto e de leitura rápida, Meu Velho Guerrilheiro traz elementos emocionais interessantes diluídos em discussões políticas que não são desenvolvidas. Apesar de alguns momentos duvidosos, é uma leitura que tem seus pontos fortes e tende a encontrar seu público.

 

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Please Like Me (Resenha)

Eu gosto muito de começar minhas resenhas com um parágrafo resumindo o conceito da obra da semana. Faço isso tanto para já adiantar ao leitor do que a história se trata, quanto por questões completamente pragmáticas: O template do WordPress coloca um trecho do começo do texto logo abaixo do título. É difícil trabalhar com essa estrutura em Please Like Me (2013-2016), uma série australiana de comédia dramática que comecei a assistir acidentalmente no Netflix e se tornou uma das minhas preferidas.

A proposta é acompanhar a vida de Josh (Josh Thomas, também criador e roteirista da série) em sua vida deveras comum. Na primeira temporada, conhecemos o rapaz ao levar um fora da namorada de adolescência, Claire (Caitilin Stasey), alegando que ele seria gay. Josh acaba transando tentando transar com um rapaz, colega de trabalho de seu melhor amigo Tom (Thomas Ward, também roteirista) nesse mesmo dia, e passa a questionar sua sexualidade e como sair do armário para seu pai em crise de meia idade Alan (David Roberts), sua madrasta ácida Niamh (Nikita Leigh-Pritchard) e sua mãe bipolar com tendências suicidas Rose (Debra Lawrence), ao redor de quem boa parte da narrativa gira ao redor.  E esse é apenas o conflito do primeiro episódio.

E é daí que me vem a dificuldade em se resumir Please Like Me: a vida de Josh é bastante banal, e a série é episódica, cada uma das quatro temporadas lidando com um período diferente da vida do rapaz, sua família e amigos.

E por que uma série que lida com banalidades é tão legal?

Josh Thomas é um comediante estabelecido na Australia, e o grande foco da narrativa é o humor, inclusive contando com participação de outros comediantes australianos, como Hannah Gadsby, estourada globalmente com o especial da Netflix “Nanette”, que ganha uma personagem fixa a partir da segunda temporada.

Mas a fonte do humor aqui não é a sátira, as convenções de Sitcom ou o pastelão, e sim aqueles momentos engraçados do cotidiano. As pessoas tem diálogos propositalmente engraçados simplesmente por serem pessoas engraçadas, como aconteceria em uma roda de amigos da vida real, lidam com humor para amenizar as dificuldades da vida, e até uma briga estúpida pode ser engraçada para quem vê de fora.

E isso é magistralmente construído com um texto afiado e realmente realista. Muitas vezes eu lembrei de conversas engraçadas que  tive com amigos próximos ou familiares, e com uma direção minuciosa que, de acordo com o que li depois, repetia cenas críticas para garantir que cada ator reagiria da forma mais adequada ao seu personagem, e aí uma cena tensa em primeiro plano se torna engraçada quando você percebe como os personagens de fundo lidam com aquilo.

O elenco da série ainda manda muito bem, com destaque para a personagem de Rose, que consegue fazer rir sem ser desrespeitosa com a montanha-russa emocional que são seus transtornos psiquiátricos e impulsos de acabar com a própria vida. Josh Thomas consegue ser babaca, egoísta, mimado, inseguro, irritante e ainda assim faz você gostar dele. É normal que pessoas tenham defeitos, é aquilo que nos iguala como humanos, e Josh é certamente um poço deles.

Os problemas de Rose, por sinal, aparecem frequentemente na narrativa. As coisas não se tornam mais leves por serem tratadas com humor e a série lida com diversos temas pesados, como aborto, toda sorte de doença psiquiátrica catalogada, conflitos familiares, preconceito variados, luto, etc. E exatamente por não fugir de nenhum dos assuntos que lida, consegue te fazer gargalhar, chorar logo em seguida e gargalhar novamente a partir daquela mesma coisa que te fez chorar alguns minutos atrás, mostrando que é possível fazer humor ácido com assuntos difíceis sem perder noção da sensibilidade.

Dá para gostar?

Please Like Me é uma das minhas séries preferidas de toda a vida, então sou suspeito para falar. Para alguém de gosta de construção e estudos de personagens como eu, é uma série que todo mundo deveria dar uma chance em algum momento. Além disso, é acessível pela Netflix e curtinha, tendo um total de 32 episódios de mais ou menos 30 minutos cada. Se você quer uma dose de realismo  que te permita dar risada, talvez essa também seja uma série para você.

 

 

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A Trilogia do Mago Negro I – O Clã dos Magos (resenha)

Postado originalmente no Cultura Nerd e Geek, em 18/08/2016

Em um mundo de fantasia marcado por grandes desigualdades sociais, Sonea, uma garota favelada, descobre ter poderes mágicos que por lei só podem ser encontrados no Clã dos Magos, cujos membros vem sempre das classes mais abastadas. Passando a ser procurada para ser treinada enquanto acredita estar fugindo por sua vida, é colocada em riscos que jamais imaginava possíveis.

Escrito pela australiana Trudi Canavan, O Clã dos Magos (2001) é o primeiro volume de uma trilogia de fantasia nos moldes clássicos. Temos aqui a protagonista aparentemente insignificante que descobre ter um grande destino, a saída de um mundo conhecido para algo completamente novo, as inseguranças de quem não sabe se está preparado para assumir o papel que o destino reservou e um mundo mágico e fantástico diferente daquele do leitor.

Esse mundo é bastante bem construído, por sinal. As comidas, bebidas, fauna e flora são próprios do livro e com nomes criados pela autora. As culturas de cada grupo que formam o mundo apresentado nesse livro são bem caracterizados e o choque entre as diferentes camadas sociais, apesar de serem as típicas que encontraríamos numa obra mais realista, fazem completo sentido dentro desse universo.

Canavan é uma pessoa criativa que conseguiu criar uma boa história, mas a sua escrita, pelo menos na tradução para o português, em alguns momentos deixa a desejar. Foi muito difícil passar das primeiras 150 páginas porque os personagens não eram definidos com muita clareza, deixando muito complicado em algumas partes saber quem fazia ou dizia o que.

A narrativa muda de ponto de vista várias vezes em cada capítulo, com o foco principal em Sonea, e por conta disso o livro deixa para explicar alguns elementos apenas quando a garota os conhece pela primeira vez. Passamos então dois terços do livro lendo sobre diversos acontecimentos diretamente ligados às regras e costumes dos Clã dos Magos, como a hierarquia, o uso dos poderes e a organização das buscas, sem que qualquer desses elementos seja apresentado direito antes do terço final. Os termos mantidos na língua do povo do livro também não são explicados durante a narrativa, forçando o leitor a buscar num glossário por uma definição curtíssima de algo que poderia muito bem estar dentro da própria história.

Apesar disso, assim que o leitor consegue ultrapassar esses problemas, a leitura flui de forma deliciosa. Os personagens são carismáticos e interessantes, os comentários sociais nunca soam forçados e o volume acaba deixando muita curiosidade para saber o que virá em seguida. Não é o melhor livro de fantasia que já li, mas se você gostar do gênero e conseguir sobreviver ao primeiro terço da história, tem em mãos uma obra divertida com uma história que foi claramente feita com bastante capricho.

 

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Meu Vizinho Totoro (Resenha)

Postado originalmente no Cultura Nerd e Geek, em 18/10/2016

Satsuki e Mei, duas irmãs ainda crianças, se mudam para uma região rural com seu pai para ficar mais próximas do hospital em que sua mãe está internada. Enquanto se acostumam com a nova casa, com a falta da mãe e com as dúvidas e inseguranças que a situação coloca em suas cabeças, as meninas descobrem as novidades de seu novo lar e fazem amizade com criaturas mágicas que vivem nas matas, incluindo o enorme Totoro.

Como estamos recém saídos da semana da criança, achei que seria interessante falar sobre um filme infantil esse mês. Meu Vizinho Totoro (Tonari no Totoro, 1988) é um longa de animação dirigido e roteirizado por Hayao Miyazaki do estúdio Ghibli, mais famosos no ocidente pelo vencedor do Oscar A Viagem de Chihiro (2001). Apesar de não ter tido muito impacto no ocidente, Totoro é possivelmente a obra mais icônica do estúdio no Japão, a ponto do personagem título ter se tornado seu mascote.

A trama gira em torno das aventuras das duas meninas com a nova vida e as criaturas fantásticas baseadas no folclore japonês, mas quando eu digo “aventura” pense menos em uma batalha mortal e mais em crianças explorando: Não temos aqui um vilão, heróis ou uma narrativa pesada de filme da Disney com começo, meio e fim, e sim passagens pontuais dos encontros das garotas com pequenas novidades cotidianas e elementos de fantasia, que se mantêm ambíguos quanto a terem de fato ocorrido ou serem só a imaginação das irmãs.

Mas isso não torna o filme menos interessante, pelo contrário. As duas protagonistas são extremamente carismáticas e escritas como crianças super realistas, com diálogos, brincadeiras, interesses e medos que qualquer pessoa que tenha contato com gente dessa idade já viu. Do tédio de Mei, muito nova para frequentar a escola e sem amigos com quem brincar, ao crescimento de Satsuki, dividida entre a inocência da infância e as responsabilidades de irmã mais velha, tudo é levado com leveza. Mas como é comum na obra do Miyazaki, o mundo pode ser encantador, mas não é fácil, e as meninas vão lidar também com os medos da perda, do desconhecido e da morte, principalmente no clímax, onde os assuntos são discutidos de forma mais aberta.

Em resumo, uma história simples, em certos momentos com tom de fábula, que nem por isso deixa de ter profundidade, daqueles filmes que são fáceis de se entender porque são clássicos. Recomendado para qualquer um que goste de cinema bem feito.

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Insatiable (Resenha)

Patty é uma menina gordinha que sofre bullying na escola. Depois de um dia onde tudo dá errado, é chamada de gorda por um mendigo que quer tomar seu chocolate. Ofendida, acerta um soco em seu nariz, recebendo em troca outro que quebra seu maxilar. Forçada a uma dieta líquida durante a recuperação, fica magra e, incentivada por seu advogado Bob, decide se dedicar ao circuito de concursos de beleza para se vingar de todos provando o quanto ficou bonita.

Ao se considerar a premissa da qual Insatiable (2018) parte, não é de se surpreender que tenha causado polêmica, e a Netflix provavelmente tinha consciência dessa possibilidade durante a divulgação. A ideia de uma série sobre a menina obesa fracassada que se torna incrível ao ficar magra passa uma mensagem completamente oposta do que se espera nos dias de hoje. Ou passaria, se esse realmente fosse o foco.

 

Pessoas complexas são complexas

Debby Ryan interpreta um tipo mais nuançado do que o trailer transparece: uma garota que alterna entre perder a linha com a atenção recebida pela beleza recém-descoberta e se sentir exatamente tão insegura quanto sempre foi. Motivada pela necessidade da aprovação que nunca recebeu quando gorda, pelo medo e ressentimento do abandono, acaba tomando as piores decisões possíveis e lidando muito mal com a própria agressividade.

Do outro lado temos Bob, interpretado por Dallas Roberts, um advogado/coach de miss, desesperado para provar seu valor para a sociedade, o pai que o rejeita e o inimigo de infância de mesmo nome, que é mais respeitado, tem um emprego melhor, uma família mais perfeita. Fazendo as vezes da figura paterna principal de Patty durante sua jornada, foi recentemente acusado falsamente de pedofilia pela mãe de uma miss que perdeu um concurso de beleza após o treinamento. Com sua reputação destruída e sem clientes, vê na menina, que atende gratuitamente no processo da briga que abre a série, porque “ninguém se importa com gordos ou mendigos”, como um meio de redenção.

 

Da sátira ao dramalhão

O começo da série tem um tom de sátira, com muitos voice-overs para não deixar dúvidas de quais são os reais objetivos de cada personagem central. Nisso, temos tramas que giram ao redor de imagem pública vs. autoimagem, a máscara da vida social vs. desejos íntimos, as relações de afeto vs. os interesses. Quase ninguém em Insatiable se aproxima de outra pessoa de forma completamente desinteressada, mesmo que todos se machuquem ao se verem usados na obtenção desses interesses. Também há uma quantidade imensa de referências a filmes e séries adolescentes clássicos, de Clube dos 5 à Pretty Little Liars, andando em um limiar entre a tiração de sarro e a homenagem.

Por outro lado, assuntos sérios são abordados com frequência e as piadas quase nunca parecem ser as custas de quem já leva bordoada da vida no mundo real. O humor da série parte dos absurdos e hipocrisias da vida pública em uma cidadezinha, não da moça ser gorda. Patty realmente sofre por ter sido excluída, e por mais que os personagens façam piadas maldosas com seu peso, a trama em si nunca deixa dúvidas de que essas pessoas estejam sendo, bom, maldosas. Esses momentos de sofrimento são tratados com uma pegada mais realista, e por pior que Patty seja como ser humano, e ela é uma pessoa horrível, a trama nunca sugere que ela mereceu o que passou. Debby Ryan consegue representar muito bem todo esse espectro, indo do pastelão de série da Disney à densidade que nos entrega em cenas como a do bolo, provavelmente a minha favorita da temporada pela crueza emocional.

 

Faminta por polêmicas

A série lida com uma série de temas que ainda poderiam ser considerados polêmicos de serem retratados. Temos aqui abuso sexual de menores (mas não de onde se espera), a descoberta da própria sexualidade, a criminalidade, aborto e o uso de drogas na adolescência, questões LGBT, etc. Apesar disso, as criticas me parecem baseadas mais na divulgação do que na obra em si. Por mais espinhoso que seja o alvo da piada, a narrativa ainda faz um julgamento moral pesado de “certo” ou “errado” e as coisas horríveis, mesmo quando tratadas com humor, nunca deixam de ser representadas como horríveis.  Se as abordagens nem sempre são politicamente corretas, as conclusões sempre caem meio perto de onde a sensibilidade atual já se encontra.

Mas o maior trunfo de Insatiable é, a meu ver, mostrar na complexidade de Patty que a vítima de bullying ainda é uma pessoa, e como pessoa, é tão capaz de crueldade, egoísmo e maldades quanto seus algozes. Mas há um cuidado para que isso não normalize a questão: Praticamente todo capítulo martela o quanto ser ostracizado e agredido deixa marcas que não desaparecem magicamente com a solução dos “defeitos”. A mensagem oposta do que a reação aos trailers deu a entender.

 

Vale a pena?

A série tem coisas muito boas, mas não é incrível. A construção dos personagens é interessante e as decisões e reações, por mais absurdas que sejam, sempre parecem orgânicas porque são construídas ao longo da narrativa. Por outro lado, em alguns momentos a trama não anda num ritmo legal e deixa a sensação de talvez funcionaria melhor com uns dois ou três episódios a menos.

Recomendo para quem gosta de trasheira high school ou tenha tido sua própria experiência com bullying.

 

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Supermax (Resenha)

Postado originalmente no Cultura Nerd e Geek, em 18/12/2016

Quando a maior emissora do país inicia um reality show com um prêmio de R$ 2 milhões, é natural que as pessoas queiram participar. Mesmo que ele se passe em um presídio de segurança máxima no meio da floresta amazônica. Ou que, para participar, você tenha que ser um criminoso, que terá seu delito divulgado em rede nacional. Mas o que ninguém espera é ficar preso no meio do nada, sem suprimentos ou comunicação com o mundo exterior, enquanto uma força misteriosa te apavora e os segredos do presídio colocam sua vida em risco.

Supermax (2016) é uma minissérie de terror produzida pela Rede Globo e dirigida por José Alvarenga Jr., na primeira tentativa da emissora em se adequar à popularização das séries feita pelo Netflix e ao mercado on demand. Conta com um grande elenco encabeçado por Mariana Ximenes (Bruna) e Cléo Pires (Sabrina) e outros dez atores vindos do teatro e do cinema.

A série trabalha com a desconstrução do familiar, pegando uma premissa conhecidíssima do espectador brasileiro, o reality show de confinamento – com direito ao Bial interpretando ele mesmo – e 12 participantes caricaturais e meio canastrões, para aos poucos tornar a situação mais e mais misteriosa e sinistra, distorcendo o conhecido e trabalhando em cima da degeneração emocional e psicológica daquelas pessoas que acabam eventualmente se vendo em uma situação extrema de abandono. Se não é difícil esperar conflitos interpessoais e morais graves de pessoas comuns nessa situação, a coisa vai além quando se trata de um grupo onde cada um é responsável por pelo menos alguma morte em seu passado.

A série foi claramente inspirada nas produções do Netflix e funciona muito mais numa maratona. Os primeiros episódios não têm nada de aterrorizantes e o clima demora para ser construído, mas, ainda assim, é bem feito e garante os sustos, que vêm da situação e ambientação: é um terror psicológico sem cenas preguiçosas de susto. Apesar de criar estranheza no começo, o elenco é forte e dá conta de diversas situações complexas, com destaque para Mariana Ximenes a partir da segunda metade.

Se no começo o roteiro dá ares pesados de pastiche e paródia de reality, pouco a pouco a identidade própria se revela. Além disso, tem o mérito de ter explicado as situações pelas quais os personagens vem a passar, no incrivelmente cinematográfico episódio 10, levando a um final que não deixa a desejar e dá a sensação de ter acabado a história da forma mais coerente possível com a própria mitologia.

A produção não é perfeita, tem alguns ruídos de narrativa, às vezes se perde no próprio ritmo, mas realiza um bom trabalho em humanizar aquelas pessoas, colocar o espectador em contato com assuntos espinhosos e o principal dentro do gênero: dar medo. Recomendo para quem tiver oportunidade de assistir.

 

Manga

Porque o mundo é um lugar melhor quando as palavras significam mais de uma coisa

Na época em que fiz a faculdade de design, lá no final dos anos 2000, tive aulas de semiótica com uma senhora inteligente, muito gente boa e meio maluca. Essas aulas foram um dos pontos altos da minha graduação e essa professora é daquelas que vou levar no coração pelo resto da vida. Quando ainda estava explicando o que diabos era a tal da semiótica, fez uma dinâmica rápida onde perguntou para cada aluno qual era a primeira coisa que vinha à mente quando ouvia a palavra “manga”. Em meio à “fruta”, “amarelo”, “espada”, “rosa”, “manga de camiseta” ou, no meu caso, “manga” por escrito, ficou fácil entender o que ela queria passar.

A interpretação de um signo, no caso “manga”, depende da bagagem e da percepção individual de cada um. Desta forma, no curso de design se falava muito de frutas enquanto, de acordo com ela, no curso de moda se falava muito sobre cortes de blusas. Eu sou alguém fascinado por palavras e pela comunicação e talvez ela tenha ganhado meu coração nessa aula.

Essa fascinação e o seu uso na comunicação foi o que tornou 1984, que eu inclusive já resenhei, o meu livro preferido. Na distopia de Orwell, uma das várias ferramentas utilizadas para manter a população sob controle era a manipulação das palavras. O governo fazia um grande esforço para que o vocabulário das pessoas fosse o mais restrito possível e isso envolvia apagar, por meio da edição de materiais textuais novos ou antigos, os vários significados que uma mesma palavra tinha.

“Manga” para o Partido significaria exclusivamente ou a fruta, ou a parte da roupa (considerando a falta de comida, provavelmente o segundo). Pouco a pouco, eliminavam também sinônimos e, eventualmente, até os antônimos, já que se uma coisa é só oposição à outra, você não precisa das duas palavras. Assim, cada uma teria apenas um significado.

E por que isso era usado como ferramenta de dominação? Porque quanto mais restrito é o seu vocabulário, mais difícil é se expressar. E quanto mais difícil é se expressar, mais difícil é organizar raciocínios complexos. Até os sinônimos colaboram com isso, porque, por mais parecidos que sejam os significados, eles ainda vão ser entendidos de formas ligeiramente diferentes.

Em um exemplo meio bobo: “luz” e “brilho” são considerados sinônimos no dicionário, mas eu nunca vi — e se alguém viu pode puxar minha orelha — quem utilizasse as duas exatamente nos mesmos contextos. E apenas isso não basta, já que tem horas que nem todo o dicionário dá conta de expressar o que é preciso. É aí que o escritor competente vai lançar mão de figuras de linguagem ou até dos neologismos. As palavras são a ferramenta de trabalho de quem lida com texto, não no sentido de se fazer uma disputa louca de quem arranja o termo mais obscuro, mas no sentido de que cada variação de um mesmo significado adiciona textura, contexto e sentimento no que está sendo escrito.

Em uma época como a atual, em que há bem mais gritaria do que certezas, deixar as palavras correrem soltas é importante, porque elas alicerçam nossa comunicação. Por isso, mais importante do que enriquecer o texto, entender que os significados e leituras sempre serão variados nos ajuda a entender um ao outro. Não por acaso, não é raro de tempos em tempos borbulhar na internet uma reação exagerada a partir de uma fala que, ao ser olhada com atenção, simplesmente gerou confusão por uma parte dizer uma coisa e a outra entender outra. Ruído na comunicação é natural e não raro resolvível com um pouco de paciência e bom humor.

Em outras vezes, fica evidente que a interpretação desfavorável foi escolhida deliberadamente e é essa interpretação que vai ser transformada em títulos click-bait e memes maldosos. Só dá para saber o que uma palavra significa para quem a proferiu ao se enxergar o contexto, algo que geralmente está além de memes e títulos. Há a criação de um fake news real, porque aquilo realmente foi dito, então não é tecnicamente mentira, certo?

Essa foi a grande lição que tirei do meu livro preferido: sempre desconfiar de quem tenta, como no Partido do Grande Irmão, eliminar significados, empobrecer debates ou simplesmente furtar palavras do que pretendiam representar. Na melhor das hipóteses, você está lidando com burrice, que, dada a riqueza de significados obtidos na linguagem popular, nada tem a ver com quantidade de estudo. No entanto, eu sempre tendo a apostar na má-intenção.