Vivemos em uma época na qual os meios de comunicação permitem que a voz de pessoas comuns e pertencentes a grupos excluídos sejam amplificadas. Graças a isso, algumas opiniões sobre a produção criativa alheia que antes ficavam restritas apenas a determinados grupos agora estão amplamente disponíveis para qualquer um ler. Uma das consequências mais perceptíveis desse fenômeno é a facilidade com a qual uma atitude, um comentário, uma construção narrativa ou um detalhe podem gerar uma grande reação. Não é raro, por outro lado, que quem preferia a produção cultural aos modos de antes se incomode e reaja acusando as empresas e artistas de ceder para garantir venda, ou até aqueles que reclamam de intenções censoras. Mas poderia mesmo ser considerado “censura” o que representantes de minorias fazem?
O que é censura?
Dentre as definições de “censura” no dicionário Michaelis:
“2 Exame de trabalhos artísticos ou de material de caráter informativo, a fim de filtrar e proibir o que é inconveniente, do ponto de vista ideológico ou moral.”
“Proibir” aqui é a palavra chave, já que só pode proibir quem detém poder o suficiente pra isso. Quando um deputado propõe uma lei criminalizando algum um tipo de música, quando um juiz determina por meio de sentença que uma peça de teatro não seja exibida, quando um prefeito determina que histórias em quadrinhos sejam recolhidas, isso é censura. E o é por serem representantes do poder usando a estrutura do Estado pra impedir a exibição de uma obra. Pessoas comuns que reclamam de uma obra e convocam boicote da mesma por qualquer motivo que seja podem até fazer pressão pela censura, mas não podem censurar, já que elas não têm poder de proibir nada.
A censura obviamente bate de frente com a liberdade de expressão, que seria o direito, constitucionalmente protegido no Brasil, do indivíduo pensar o que quiser sobre o que quiser e expressar o que quiser sobre o que quiser. Como todo direito, a liberdade de expressão tem exceções que estão sendo constantemente debatidas. Propaganda nazista, por exemplo, é crime por aqui e a grande maioria dos países considerados desenvolvidos proíbem determinados discursos em alguma medida, geralmente aqueles que descriminam grupos historicamente oprimidos como judeus, mulheres, negros e outras minorias étnicas e LGBTQ+.
A questão do “mimimi” de minoria
Essas limitações não ocorrem por medo de “magoar coraçõezinhos frágeis”. Esse tipo de discurso não raro descamba para a violência ou retirada de direito pelo próprio Estado. Por exemplo: O holocausto nazista era totalmente legal de acordo com as leis alemãs da época. Homossexualidade é crime em diversos países do mundo, com pena de morte inclusive, e era crime na Inglaterra até final dos anos 1960. E até a mesma época, casamento entre pessoas de raças diferentes era proibido em alguns estados dos EUA. No Brasil, ainda há pouco havia quem fosse absolvido por matar mulher por ciúmes. Etc, etc, etc. E mesmo que não seja muito claro o quão eficiente a política de proibir discursos é, a população brasileira é bastante resistente quando há proposta de tentativas de soluções não proibicionistas, como incluir diversidade no plano de educação.
A gente até vive em uma sociedade com algum verniz de igualdade, mas há diversos grupos que ainda sofrem violência da população e negligência do Estado aqui mesmo no Brasil, e isso fica fácil de se constatar em um exemplo especialmente cruel: A expectativa de vida do brasileiro médio era de 76 anos em 2018, e a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil era de 35 anos em 2017. Só pra ficar bem claro, temos um grupo de pessoas que morre em média 40 anos antes do que a média da população em geral. E esse maior risco de morrer se dá tanto por violência direta quanto indireta, já que alguém que tem menos chances de concluir os estudos por que sofre discriminação na escola, que tem menos chances de ter um emprego digno ou arrumar um lugar pra morar por preconceito, que muitas vezes recorre a prostituição na rua por ser a única opção que aparece quando a fome aperta, obviamente tem maiores chances de morrer.
Porque as minorias não censuram
É possível identificar em alguns momentos que membros de grupos oprimidos façam algumas reclamações fora da realidade. Há um viés censor, por exemplo, em determinar se algo é ou não apropriado antes da obra ser consumida, algo que de fato acontece de tempos em tempos. Também há algumas vezes as reclamações que surgem de leituras rasas, como por exemplo, confundir crítica por meio de ironia com endosso. E também é frequente que aqueles que se opõe às reclamações feitas por alguém da população oprimida tomem um crítico barulhento pelo todo, muitas vezes por má-fé.
Apesar disso, é importante reforçar que feministas, ativistas LGBTQ, movimento negro e outros que representam as minorias políticas não são fortes o suficiente para censurar. Podem reclamar, podem xingar, podem convocar boicote e podem até convencer os produtores culturais da necessidade de que a representação nas obras de ficção sejam mais diversas. Mas a capacidade de influência não vai além disso, o que fica fácil de ver com 5 minutos de pesquisa no Google: não há o suficiente dessas pessoas em posições de poder pra promover o que de fato seria censura. Seja nos três poderes do Estado, seja nas elites dos setores privados.
Quando a maioria do Congresso Nacional for formado por pessoas desses grupos, se isso ocorrer um dia, pode-se pensar nesse risco, mas é fato que a grande maioria do Poder Legislativo é formado por conservadores ou populistas que vão na onda do que vai render mais votos, e quando se trata de questão moral, o que rende voto no Brasil é ser conservador. Por outro lado, obras que representam esses grupos, principalmente os LGBTQ, são censuradas com uma frequência incompatível com a democracia. Vide a Bienal deste ano.
Sobre os guardiões da “liberdade de expressão”
E, por fim, as pessoas que gostam de evocar liberdade de expressão quando criticam os hobbies delas tem uma grande dificuldade de lembrar que reclamar de algo que você achou ruim, ofensivo ou de mal-gosto também é liberdade de expressão. Fica então difícil compreender até que ponto estão preocupados de fato com censura, já que se for o caso, deveriam igualmente horrorizadas quando juiz proíbe peça de teatro, prefeito manda recolher quadrinho ou deputado federal propõe lei criminalizando gênero musical. Porque se não ficam, cria-se a impressão de que é só um bando de mimado frustrado porque a cultura pop deixou, depois de muita reclamação, de pensar apenas neles como público alvo.